Libertando as mulheres e as raparigas da violência em Moçambique

Photo: UNICEF
8 março 2021

MAPUTO, Moçambique - A crise da COVID-19 trouxe novos desafios para mulheres e raparigas em todo o mundo. Muitos países registaram um aumento nos casos de violência doméstica, em resultado de pressões económicas, confinamento e aumento de tensões no lar.

Em Moçambique, já antes da pandemia, uma em cada três mulheres sofria violência durante a vida. Mas nos últimos dois anos, eventos climáticos extremos, tais como ciclones, secas e chuvas irregulares agravaram a situação e levaram à perda de meios de subsistência, colocando um peso adicional sobre as mulheres e raparigas.

De forma conjunta, os parceiros alcançaram mais de 1.9 milhões de pessoas, entre os quais mais de 1.1 milhões de mulheres e raparigas.

Apesar dos múltiplos desafios, o Governo de Moçambique, as organizações da sociedade civil (OSCs) e as Nações Unidas (ONU) continuam a trabalhar em conjunto para eliminar a violência contra as mulheres e raparigas, através da Iniciativa Spotlight, financiada pela União Europeia (UE).

No Dia Internacional da Mulher, fazemos um balanço dos progressos e desafios para alcançar um Moçambique onde todas as mulheres e raparigas possam viver uma vida livre de violência.

A Iniciativa Spotlight – mudando vidas 

A Iniciativa Spotlight, que é liderada pelo Ministério do Género, Criança e Acção Social (MGCAS), foi lançada no país há dois anos, em Março de 2019, e é implementada nas províncias de Gaza, Manica e Nampula por um período de quatro anos (2019-2022). Com um compromisso de 40 milhões de dólares da UE, o programa foca-se nas áreas prioritárias de combate à violência sexual e baseada no género (VBG) e às uniões prematuras, bem como na promoção da saúde sexual e reprodutiva (SSR) das mulheres e raparigas.


Activistas comunitárias Sandra Waluza, Saroya da Cruz and Júlia Lembane durante uma sessão de formação sobre a prevenção da VBG. Foto: LUARTE/Etevaldo Orlando Jack

As instituições governamentais dos sectores da acção social, saúde, justiça e polícia constituem o alicerce da Iniciativa Spotlight em Moçambique, juntamente com mais de 20 OSCs. De forma conjunta, estes parceiros alcançaram mais de 1.9 milhões de pessoas, entre os quais mais de 1.1 milhões de mulheres e raparigas, nos últimos dois anos.

As conquistas da Iniciativa Spotlight em Moçambique podem ser observadas através histórias da Amina *, da Dalva, da Denardina, do Guidion, da Helena, da Isaura *, da Maria * e da Selma * - mulheres, raparigas e homens cujas vidas foram transformadas pelo programa.

Justiça e apoio para sobreviventes de violência

A Isaura*, natural da província de Manica, foi vítima de violência sexual quando tinha apenas 11 anos. A sua família denunciou o caso à LeMuSica, uma OSC local, que por sua vez levou Isaura ao Gabinete de Atendimento à Família e Menores Vítimas de Violência (GAFMVV) mais próximo. A Isaura foi internada num hospital, onde recebeu cuidados essenciais, sendo depois encaminhada para um abrigo para mulheres, onde ainda permanece para recuperar do trauma, com o apoio de assistentes sociais. O caso foi encaminhado para a polícia, o agressor foi encontrado e condenado a 19 anos de prisão pelo Tribunal Provincial de Manica.

Este é um exemplo de sucesso de um caso de VBG resolvido pelo sistema de justiça moçambicano. Infelizmente, por cada caso resolvido, muitos outros nunca são denunciados, são retirados ou arquivados por falta de provas.

Com o apoio da Iniciativa Spotlight, o governo está a capacitar provedores de serviços e a fortalecer as instituições nacionais, para garantir que os casos de VBG denunciados sejam devidamente acompanhados, as sobreviventes protegidas e os perpetradores responsabilizados.

Em 2020, os currículos das escolas de polícia foram revistos para incluir a prevenção da VBG, HIV/SIDA e direitos humanos como parte da formação dos cadetes. Instituições-chave, como o Tribunal Supremo, a Procuradoria Geral da República e o Serviço Nacional de Investigação Criminal estabeleceram Unidades de Género específicas.

Mais de 1.000 funcionários do sector da justiça foram treinados para implementar um novo pacote de leis aprovado pela Assembleia da República, que protege as mulheres e as raparigas da violência. Isto garante uma melhor capacidade da justiça formal para responder a casos de VBG e responsabilizar os perpetradores.

Eliminando as uniões prematuras

A Selma*, natural da província de Gaza, foi forçada a casar-se quando tinha 17 anos, engravidando pouco tempo depois. Activistas comunitários que trabalham com a OSC Kutenga identificaram o caso e persuadiram ambas as famílias a cancelar a união. Ao início, as famílias ofereceram resistência, e ficou claro que estas ainda não conheciam a nova lei que criminaliza as uniões prematuras, até que a polícia se envolveu.

Com a ajuda dos activistas da Kutenga, as famílias entenderam a lei e as graves consequências que a união poderia ter na vida da Selma, e finalmente cancelaram a união. Hoje, a Selma vive com a sua família e a aprendeu a gerir o seu próprio negócio com a ajuda da Gender Links, uma OSC apoiada pelo programa.


Jovens como o Guidion formaram um grupo  de activistas e hoje educam a sua comunidade a prevenir a VBG e as uniões prematuras. Foto: UN/Ricardo Franco

O Guidion é um jovem de 26 anos da província de Nampula, que foi formado sobre os direitos das mulheres, prevenção da VBG e uniões prematuras pela OSC Ophenta. Ele costumava namorar com raparigas menores de 18 anos. Após a formação, ele entendeu que poderia estar a violar os direitos destas raparigas, e inadvertidamente colocando-as em perigo. O Guidion tornou-se um activista, e hoje ajuda a sua comunidade a prevenir a VBG.

Este seu novo conhecimento teve um impacto adicional na sua própria família. Quando foi anunciado que a irmã do Guidion, de apenas 14 anos, estava prestes a casar-se, Guidion opôs-se firmemente à decisão. Ele explicou ao pai que a união era contra a lei e que a vida da sua irmã seria prejudicada por esta união prematura. O seu pai ouviu-o, cancelou a união e permitiu que sua filha continuasse a estudar.

Estima-se que 3 milhões de pessoas tenham já sido sensibilizadas sobre a nova lei contra as uniões prematuras.

No final de 2019, a Assembleia da República aprovou uma nova lei que criminaliza as uniões prematuras (com menores de 18 anos). Este foi o culminar de anos de esforços por parte do Governo, da sociedade civil e de organizações baseadas nos direitos, que estavam preocupados com o facto de quase metade das raparigas em Moçambique casar antes dos 18 anos – uma das taxas de uniões prematuras mais elevadas do mundo.

Sob a liderança do MGCAS, o programa trabalha com instituições públicas e com a sociedade civil para divulgar esta nova lei às comunidades de todo o país. Estima-se que 3 milhões de pessoas tenham já sido sensibilizadas sobre a nova lei. Estas pessoas receberam também informação crítica sobre a prevenção da VBG e da COVID-19, através de acções de mobilização comunitária, programas radiofónicos, palestras com a sociedade civil, funcionários do governo e líderes tradicionais. O trabalho conjunto entre estas partes levou ao resgate de 15 raparigas de uniões prematuras no ano passado.

Inovando para prevenir a VBG durante a pandemia

“A inovação e a criatividade são essenciais na resposta a esta crise”, afirmou o Embaixador da UE em Moçambique, Antonio Sánchez-Benedito Gaspar, quando o Governo de Moçambique anunciou medidas para abrandar a propagação da COVID-19 e o programa teve ser adaptado à nova realidade.

Na mesma ocasião, Myrta Kaulard, Coordenadora Residente da ONU em Moçambique, disse que a ONU iria “continuar a combater a violência e a promover a igualdade de género e o desenvolvimento sustentável – as armas mais eficazes contra a COVID-19”. Para continuar a alcançar as mulheres e raparigas mais vulneráveis, os parceiros da Iniciativa Spotlight adoptaram estratégias inovadoras:


Activistas comunitárias realizam campanhas com megafones para sensibilizar as comunidades sobre a VBG, as uniões prematuras e a COVID-19. Foto: Ophenta

A Denardina, de 26 anos, trabalha como activista comunitária na cidade de Nampula, com a OSC Ophenta. Antes da pandemia, esta organização costumava organizar campanhas porta-a-porta e em transportes públicos, organizando também grupos de debate e sessões de teatro de rua para educar as comunidades sobre a prevenção da VBG. Devido à COVID-19, estas activistas agora caminham ou conduzem através dos bairros da Cidade de Nampula com megafones, disseminando mensagens sobre prevenção e denúncia da VBG e uniões prematuras. Durante as campanhas, as activistas partilham os contactos das linhas de apoio e distribuem folhetos para informar as mulheres sobre onde encontrar apoio e serviços. O WhatsApp também é utilizado como ferramenta de denúncia de casos de violência. 

Desde o início do programa, os parceiros da sociedade civil alcançaram mais de 900.000 pessoas ao nível da comunidade com a ajuda de organizações locais como a Ophenta.

Com as escolas fechadas e o acesso aos serviços condicionado devido à COVID-19, as mulheres e raparigas correm maior risco de violência, mas têm menos oportunidades de denunciar abusos. 

As linhas de apoio e serviços de SMS gratuitos, tais como a Linha Fala Criança, a Linha Verde e o SMS Biz (uma plataforma de SMS), foram rapidamente reforçados e os seus operadores capacitados para lidar com casos de VBG.

Esses serviços estão agora disponíveis em todos os distritos-alvo do programa, o que permite às mulheres e raparigas denunciar casos de VBG e obter informação com segurança e rapidez. Operadores capacitados, tal como a Dalva, de 29 anos, residente em Maputo, salvam vidas ajudando jovens a prevenir gravidezes não planeadas, transmissão do HIV e uniões prematuras.

Melhores serviços e melhores dados estatísticos

Em resposta à necessidade de melhorar a qualidade dos serviços disponíveis para as sobreviventes de VBG, a Iniciativa Spotlight apoia o governo a realizar investimentos significativos nestes serviços.

Em 2020, foram distribuídas seis clínicas móveis para fornecer serviços básicos de saúde, de SSR e de resposta à VBG, bem como informações e encaminhamentos no seio de populações remotas. Estima-se que mais de 19.000 pessoas tenham sido alcançadas por estas clínicas. Foram ainda reabilitados, mobilados e equipados nove “Serviços Amigos dos Adolescentes e Jovens” (SAAJ), seis espaços de saúde direccionados para os jovens e três Centros de Atendimento Integrado às Vítimas de Violência (CAI).


Provedores de serviços recolhem dados sobre pacientes numa clínica móvel no Distrito de Chongoene, Província de Gaza. As clínicas móveis são cruciais para as mulheres e raparigas que não têm acesso a serviços e unidades de saúde. Foto: UNFPA Moçambique

O programa também melhorou o acesso aos serviços de VBG, SSR e aconselhamento, tendo beneficiado mais de 400.000 pessoas. Para garantir a qualidade desses serviços, mais de 2.000 funcionários do governo foram capacitados sobre legislação e serviços integrados de resposta à VBG.

Quando a Amina*, de 14 anos, sofreu violação sexual, ela contactou uma OSC local que trabalha na resposta à VBG em Nampula. Esta OSC encaminhou o caso da Amina para o CAI de Nampula. Uma vez lá, uma equipa integrada de profissionais de saúde, assistentes sociais, polícia e funcionários do sector da justiça ajudaram a Amina. Ela foi apoiada sem ter que repetir a sua história ou revisitar o seu trauma várias vezes. A equipa registou o caso numa ficha única, mantendo a confidencialidade, e encaminhou a Amina para um hospital onde ela recebeu cuidados essenciais.

Os serviços de justiça acompanharam o caso e, em resultado, o agressor da Amina foi condenado a 12 anos de prisão. “Quando as pessoas levam o caso até ao CAI, podem resolvê-lo sem qualquer problema”, disse Amina. Existem 24 CAIs em Moçambique, e a Iniciativa Spotlight ajudou a reabilitar três deles.


Carmen Omar, assistente social e coordenadora do CAI de Nampula, conversa com uma enfermeirade saúde materna e infantil na sala do departamento de saúde do CAI, onde as sobreviventes são assistidas e recebem cuidados médicos. Foto: UNFPA Moçambique/Roberto Manjate

Para melhorar a recolha de dados estatísticos, o governo testou o InfoViolência, um novo pacote de software para gerir casos de VBG. Este software fornece informações importantes sobre as tendências relacionadas com a VBG, o que contribui para priorizar intervenções, políticas e orçamentos em áreas onde as mulheres e raparigas mais precisam.

Fortalecendo a sociedade civil

As OSCs têm desempenhado um papel central na sensibilização das comunidades sobre práticas que discriminam contra as mulheres e raparigas. Com o apoio da Iniciativa Spotlight, mais de 40 organizações de mulheres em Moçambique foram fortalecidas para defender os direitos das mulheres. 

As OSCs também formaram 14 plataformas a nível distrital e provincial, o que permite que mais de 57 organizações baseadas na comunidade aprendam, partilhem experiências e encaminhem casos de VBG às autoridades locais, frequentemente usando o WhatsApp para acelerar os encaminhamentos.

Algumas destas organizações trabalham para capacitar mulheres vulneráveis ​​sobre empreendedorismo, poupança e acesso ao crédito. Mais de 1.800 dessas mulheres foram capacitadas e hoje gerem os seus próprios negócios.

“Aprendi a fazer sabão com produtos naturais que encontro na minha zona, o que diminui os meus custos de produção”, disse Helena, uma jovem da província de Manica. Ela aprendeu como gerir uma pequena empresa com o apoio de uma OSC apoiada pelo programa, e hoje ganha a vida a vender sabão. Ter acesso e controlo sobre os seus recursos dá a estas mulheres poder de decisão sobre as suas vidas, ajudando a prevenir a dependência económica e os abusos.

Uma parceria reforçada


Activista da sociedade civil sensibiliza a comunidade sobre a prevenção da VBG durante uma campanha de rua. Foto: ASCHA

Alguns desafios permanecem: a sociedade civil e as instituições governamentais que respondem à VBG estão mais fortes, mas a coordenação e a logística pelo vasto território nacional continuam a levantar desafios. Mudar as mentalidades e comportamentos em relação aos direitos das mulheres e raparigas leva tempo, mas continua a ser extremamente importante. Para o efeito, é fundamental uma parceria reforçada entre o Governo de Moçambique, a EU, a ONU e a sociedade civil.

A Iniciativa Spotlight continua a apoiar mulheres como a Maria*, de 25 anos, natural de Manica. A Maria foi agredida pelo marido durante a gravidez. Com a ajuda de activistas comunitários, ela encontrou segurança num abrigo para mulheres apoiado pelo programa. Neste abrigo, ela não só encontrou protecção, mas também aprendeu que as sobreviventes têm escolhas, quando são apoiadas. “Eu posso aproximar-me de outra mulher e dizer que ela não precisa sofrer. Aprendi que podemos denunciar abusos porque, se não falarmos, a violência nunca vai acabar.”

As histórias da Amina, da Dalva, da Denardina, do Guidion, da Helena, da Isaura, da Maria e da Selma recordam-nos que a violência contra as mulheres e raparigas pode ser desafiada. Atitudes e mentalidades podem mudar.

Sob a liderança do Governo, juntamente com a sociedade civil, a Iniciativa Spotlight continua a trabalhar lado a lado com homens e rapazes, mulheres e raparigas, por um Moçambique onde todas as mulheres e raparigas possam viver uma vida livre de violência.

* os nomes foram alterados para proteger a privacidade das sobreviventes