“Estamos fartas de recomeços, precisamos de tranquilidade” - como as alterações climáticas atingem as mulheres e as raparigas em Moçambique

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A casa de Madalena António, na cidade de Nampula, foi parcialmente destruída pelo ciclone Gombe. Quando saiu de casa para pedir apoio, os seus bens foram roubados, e com eles, o material que usava no seu negócio. Madalena vive agora com o apoio do Grupo de Mulheres do Bairro de Piloto e o dos seus vizinhos. Foto: UNICEF/ Lara LonglePiloto and neighbours. Photo: UNICEF/Lara Longle
7 maio 2022

NAMPULA, Moçambique - O ciclone Gombe atingiu a costa norte de Moçambique no dia 11 de Março. Estima-se que, no total, o ciclone tenha afectado mais de 700 mil pessoas. Mais de 60 pessoas perderam a vida (INGD). Desde o início do ano, dois desastres naturais de grande escala atingiram o país, aumentando a vulnerabilidade da vida das mulheres e raparigas moçambicanas.

Em Nampula, Irlanda Ernesto, 32, uma empresária de produtos agrícolas, ficou com o seu negócio parado. As machambas ficaram alagadas, as estradas intransitáveis. Os produtos estão a estragar-se no campo.

"Antes ouvíamos falar de ciclones a cada dez anos, agora quantos temos num ano? Estamos fartas de recomeços." - Sra. Irlanda, empresária de produtos agrícolas afectada pelo ciclone 

Moçambique é o terceiro país africano mais vulnerável ao risco de catástrofes naturais (GAR 2019). Nos últimos 42 anos, registaram-se 15 secas, 20 inundações e 26 ciclones tropicais (INGD). O último foi o ciclone Gombe.

“Não vamos conseguir viver assim muito tempo. Temos de fazer qualquer coisa rápido em relação a estes ciclones”, alerta a Sra. Irlanda. Cerca de dois terços da força de trabalho de Moçambique estão ligados à agricultura (AEA 2015), o sector ocupa mais de 90 por cento das mulheres e raparigas moçambicanas em idade activa (Fórum Mulher, 2019). Os desastres naturais têm um impacto directo na vida das mulheres e raparigas, tornando-as mais susceptiveis à insegurança alimentar, à pobreza e à violência baseada no género, e aumentando a sua dependência de parceiros masculinos, familiares e proprietários de terras.


A destruição de pontes e estradas provocada pelo ciclone Gombe, impede o comércio e o transporte de bens essenciais para algumas das comunidades de Nampula. Fotografia: UNICEF/Lara Longle

“Antes ouvíamos falar de ciclones a cada dez anos, agora quantos temos num ano? Estamos fartas de recomeços, precisamos de tranqulidade, queremos continuar com a nossa vida”, partilha a Sra. Irlanda.

As alterações climáticas aumentam as desigualdades de género existentes, deixando muitas mulheres e raparigas em risco de perderem as suas casas, de enfrentarem situações de co-habitação insegura, disrupções nos serviços de saúde e de protecção, abandono escolar, e de violência baseada no género. Para uma recuperação equitativa, inclusiva e sustentável, é essencial colocar as mulheres e as raparigas em posições centrais no debate e na tomada de decisões relativas às alterações climáticas.

Desde 2019, a Iniciativa Spotlight em Moçambique promove o empoderamento económico, a diversificação de fontes de rendimento para as mulheres e raparigas, e o acesso a informação sobre Violência Baseada no Género (VBG), nomeadamente em contextos de desastres naturais. Acções que têm vindo a aumentar a resiliência das mulheres aos choques climáticos.

Mas a pergunta da Sra. Ernesto ecoa: até quando terão as mulheres que recomeçar?

 

Independência financeira e poupanças impulsionam a recuperação de choques climáticos

Sónia Gonçalves, 20, e mais nove raparigas abriram um cabeleireiro no distrito de Mogovolas, província de Nampula. O grupo de jovens mulheres contou com o apoio da Ophavela, uma organização da sociedade civil da rede de parceiros  da Iniciativa Spotlight, que as formou em gestão de negócios, estratégias de poupança e no novo ofício, e forneceu-lhes ainda o material necessário para arrancarem com o seu negócio.

“O nosso salão foi o primeiro do bairro a ser gerido e a empregar mulheres. Como trabalhamos com um sistema de escalas, podemos ter o nosso emprego, estudar e cuidar dos nossos filhos. Estava tudo a correr-nos bem, mas chegou o ciclone e devorou tudo. Levou tudo”, conta Sónia.

"Parece que há sempre qualquer coisa a atrasar-nos. É triste ter de fazer tudo outra vez." - Agira Fernanda, sócia do cabeleireiro destruído pelo ciclone 

Os materiais que restaram, estão agora na varanda da casa dos pais de uma das jovens mulheres, onde hoje  trabalham.

“É muito triste. Tínhamos tido formação e apoio e estava tudo a correr-nos bem. Vamos ter de trabalhar muito para recuperarmos disto. A poupança que fizemos juntas vai ajudar, mas todas as coisas que queríamos fazer ficam atrasadas. Eu estava a juntar dinheiro para o meu curso na área de saúde, e agora já não tenho condições”, partilha  Sónia.

O investimento direccionado para a criação e gestão de negócios e empregos para mulheres e raparigas é uma forma sustentável de progresso económico, que reduz a sua dependência financeira e liberta-as do risco de violência, muitas vezes associado à vulnerabilidade económica. Mas este progresso é comprometido por acontecimentos relacionados com as alterações climáticas, tais como os ciclones.


Agira, Anatércia, Estefânia e Sónia (com Miriam ao colo) vão ter que investir todas as suas poupanças para a recuperação do seu cabeleireiro, que foi destruído pelo ciclone Gombe. Fotografia: UNICEF/Lara Longle

“Uma coisa que o nosso grupo tem de bom é podermos apoiar-nos umas às outras. Hoje não aceitamos violência na nossa vida porque já não dependemos de ninguém. Mas parece que há sempre qualquer coisa a atrasar-nos, agora foi o ciclone. Eu sei que é uma questão de tempo até termos o salão outra vez, mas é triste ter de fazer tudo outra vez”, partilha Agira Fernando, 18, sócia do cabeleireiro.

Em 2021, com o apoio da Iniciativa Spotlight, mais de 9.000 mulheres e raparigas foram alcançadas por programas de empoderamento económico, muitas das quais, agora afectadas pelo ciclone Gombe, terão de investir todas as suas poupanças na recuperação dos seus negócios.

 

Ocupar novos espaços no mercado de trabalho

Irlanda Ernesto, 32, começou o seu negócio em 2020. Compra amendoins, mandioca e milho a mulheres com machambas, e vende-os nos mercados locais de Piloto, bairro da cidade de Nampula.

"Ficou tudo destruído. Para quem depende da terra como nós, isto significa parar tudo. Temos a vida parada." - Sra. Irlanda 

“Depois da formação e do investimento inicial para o meu negócio, a minha vida estava a correr bem, tinha arrancado. E de repente fui parada pelo (ciclone) Gombe. Ficou tudo destruído. As machambas ficaram alagadas ou isoladas, e as produtoras não conseguem vender os produtos porque nós, as compradoras, não temos como passar nas estradas, que ficaram destruídas. Para quem depende da terra como nós, isto significa parar tudo. Temos a vida parada”, conta a Sra. Ernesto.

Inserida num grupo de mulheres apoiado pelo Núcleo Todos Contra a Violência, uma das plataformas coordenadora das organizações da sociedade civil de Nampula, parceiro da Iniciativa Spotlight, a Sra. Irlanda aponta a importância da diversificação de emprego para as mulheres, e reforça o quanto os desastres impactam a vida das mulheres que dependem da agricultura como principal meio de subsistência.


Para Irlanda Ernesto, empresária de produtos agrícolas, as oportunidades de emprego para as mulheres fora do sector agrícola é essencial, mas deve ter por base uma decisão das mulheres, e não uma resposta aos desastres climáticos. Fotografia: UNICEF/Lara Longle

“Estes desastres não trazem a todos os mesmos problemas. Por exemplo, os homens têm trabalhos e ocupações que, na maioria das vezes, não dependem da terra. Então eles vão ter sempre o pão deles ao fim do mês. Nós, as mulheres, é que ainda estamos muito ligadas à terra. Eu vejo que a vida das mulheres do meu grupo com outros negócios também foram afectadas, mas nem todas tiveram de parar. Isso é bom, fazermos coisas diferentes também nos ajuda nestes momentos, quando umas não têm, outras podem dar uma ajuda”, partilha a Sra. Irlanda.

Para a Sra. Irlanda ter outro negócio devia ser uma decisão estratégica, e não um medo. “Escolher ter outro negócio devia ser uma decisão minha e não uma solução para resolver a vida quando chegam estes ciclones. Termos outros negócios é bom, mas o mais importante mesmo é fazer qualquer coisa para acabar com estas tempestades”, desabafa.

Desde 2019, a Iniciativa Spotlight tem vindo a formar mulheres em diferentes áreas vocacionais, como electricidade, mecânica, metalurgia, gastronomia ou padaria, ou corte e costura, promovendo a diversificação de ocupações profissionais pelas mulheres e raparigas, e aumentando as suas opções de escolhas profissionais e o seu retorno financeiro. O acesso a diferentes áreas vocacionais por parte das mulheres e raparigas, contribui também para a alteração das normas nocivas que tipificam as profissões por género.

 

Informação e conhecimento como recursos sustentáveis contra a GBV e as alterações climáticas

“Nós queremos saber mais sobre estas alterações climáticas. O nosso grupo de mulheres foi muito afectado pelo ciclone, se soubermos mais, podemos discutir e pensar em soluções”, explica Estefânia Eduardo, 34, líder do Grupo de Mulheres do bairro de Piloto, na cidade de Nampula.


Durante contextos de conflito ou desastres naturais, as mulheres são as primeiras a perder os seus bens e empregos. Durante o ciclone Gombe, Joana Chirome teve de abrigar-se com os seus filhos na casa de uma vizinha; quando regressou à sua casa, todos os seus bens tinham sido roubados. Fotografia: UNICEF/Lara Longle

O Grupo de Mulheres de Piloto é uma das mais de 100 organizações de mulheres apoiadas pela Iniciativa Spotlight que receberam formação para a defesa dos direitos das mulheres e raparigas, e para a prevenção e eliminação da Violência Baseada no Género. O grupo, formado incialmente com o apoio  da organização da sociedade civil Ophenta, encontra-se semanalmente para debater vários temas, fazendo encaminhamento de casos de VBG e organizando campanhas informativas porta-a-porta e em centros de saúde.

Quase todas as 53 mulheres do grupo foram afectadas pelo ciclone Gombe. A chuva e os ventos destruíram as suas casas parcial ou totalmente, e muitas delas foram roubadas na própria noite do ciclone, ficando sem os seus alimentos e bens. Joana Chirome foi uma delas.

“A casa da minha vizinha partiu-se e caiu para a minha casa. Tive de sair com os meus cinco filhos para a casa de outra vizinha, porque a minha estava muito fraca. Quando voltei à minha casa, já não tinha a minha comida, a minha roupa, a casa estava toda vazia. Levaram também o óleo que uso para o meu negócio de comidas. Sou viúva, só conto comigo mesma, e agora fiquei sem sustento”, conta a Sra. Joana.

Durante contextos de conflitos e desastres naturais, as mulheres são as primeiras a perder os seus bens e empregos, e o risco de abandono escolar por parte das raparigas aumenta (UNITE). Histórias como a da Sra. Joana são  contadas por muitas outras mulheres do bairro de Piloto.

"Não somos ignorantes, só precisamos de informação. Precisamos de saber mais sobre o clima e fazer qualquer coisa." - Sra. Estefânia, líder do Grupo de Mulheres do bairro de Piloto

Orientada para a acção, e com um sentido de urgência para apoiar as mulheres da sua comunidade, a Sra. Estefânia pede apoio. “Aprendemos muitas coisas sobre Violência Baseada no Género. Nós não somos ignorantes, só precisamos de informação. Precisamos de saber mais sobre o clima e fazer qualquer coisa, ele também nos está a afectar, também é uma violência para nós”, conclui a Sra. Estefânia.

A Iniciativa Spotlight apoiou a “Linha Verde - 1458”, uma linha telefónica financiada e implementada pelo Programa Mundial para a Alimentação (PAM), e apoiada por outras entidades das Nações Unidas, que é utilizada pelas populações afectadas por crises, incluindo desastres naturais, para pedidos de informação e assistência, oferecendo também vias de encaminhamento para as sobreviventes de VBG durante as crises climáticas. Desde 2022, a Iniciativa Spotlight está a trabalhar com a União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN), e a colocar as alterações climáticas como um dos seus temas centrais.

Embora os resultados substanciais demonstrados por estas iniciativas, as alterações climáticas são um neutralizador na vida das mulheres e raparigas. A viver num dos países do continente mais propenso a desastres naturais, as mulheres e raparigas moçambicanas não são excepção: estão a viver uma emergência climática e pedem acções imediatas.

A Iniciativa Spotlight é uma iniciativa global das Nações Unidas que tem recebido o apoio generoso da União Europeia. O seu objectivo é o de eliminar todas as formas de violência contra as mulheres e raparigas. Em Moçambique, a Iniciativa Spotlight é liderada pelo Ministério do Género, Criança e Acção Social (MGCAS) em parceria com as Nações Unidas e organizações da sociedade civil (OSC).

 

Por Lara Longle