Quebrando o silêncio sobre a violência baseada no género em Moçambique

During a training organized by civil society organizations ASCHA and Forum Mulher, girls learn about their bodies, consent, human rights and gender-based violence in Gaza Province. Photo: ASCHA
3 março 2021

MAPUTO, Moçambique – Oito raparigas sentam-se em esteiras de palha sob a sombra de uma árvore na província de Gaza, no sul de Moçambique. Elas partilham as suas histórias sobre abuso, violência e superação.

A Celeste*, uma jovem de 21 anos com um sorriso gentil, lidera o grupo. A sua história ressoa com as outras raparigas: “Eu já passei por abusos e sei o quanto dói”, disse ela.

O grupo, denominado “Fala Minha Irmã”, é um espaço de debate promovido pela Associação Sociocultural Horizonte Azul (ASCHA), uma organização juvenil financiada pela Iniciativa Spotlight. Neste grupo, as raparigas e jovens mulheres podem partilhar as suas experiências em segurança, aprender sobre a violência baseada no género e quebrar o silêncio sobre relacionamentos abusivos.

“Eu vivia com medo constantemente. Um dia ele bateu-me com tanta força que não consegui falar durante três dias” - Celeste, sobrevivente de violência baseada no género

A Celeste tinha 16 anos quando começou um relacionamento com um homem poderoso. Depois de uma fase inicial feliz, o relacionamento mudou, e a Celeste começou a ter medo das explosões violentas do seu parceiro, que eram cada vez mais frequentes.

“Eu vivia com medo constantemente. Um dia ele bateu-me com tanta força que não consegui falar durante três dias”, disse a Celeste.

Ela tentou deixá-lo várias vezes. Mas cada vez que ela o fazia, a raiva do seu parceiro piorava. Ele ameaçou fazer mal à família da Celeste, tentou atropelá-la com e espancou-a repetidamente. A Celeste tinha medo de sair de casa e começou a faltar à escola.

Embora se sentisse assustada e ressentida, a Celeste reuniu coragem para denunciar o seu agressor na esquadra. Mas quando o seu parceiro descobriu as suas intenções, ele usou a sua influência para impedi-la de denunciar o caso. Depois, raptou-a, tentou violá-la e empurrou-a para fora do carro em andamento.

“Eu não podia contar isto à minha família”, disse a Celeste.


Um grupo de raparigas e jovens mulheres partilha as suas histórias durante uma sessão do espaço de debate "Fala Minha Irmã", na província de Gaza. Foto: ASCHA

A Celeste protegia a sua família do abuso que vinha sofrendo, embora vivessem sob o mesmo tecto. Por vezes, após episódios de violência, ela ia para a casa da sua irmã. A Celeste acreditava que a violência era normal. Exausta e conformada com a situação, considerou atá casar-se com o agressor, apenas para apaziguá-lo.

Uma mudança inesperada

Tendo estado ligada a organizações da sociedade civil há algum tempo, um dia a Celeste recebeu um convite para participar numa sessão de formação sobre direitos humanos e violência baseada no género, organizada pela ASCHA  com o apoio do Fórum Mulher, outra organização financiada pela Iniciativa Spotlight.

Na formação, ela aprendeu sobre os direitos das mulheres e sobre as muitas formas que a violência baseada no género pode assumir.

Ela também percebeu que, de acordo com o último Inquérito Demográfico e de Saúde (2011), ela se encontrava entre as uma em cada três mulheres em Moçambique que sofrem violência durante a vida. O mesmo estudo revela que, entre essas mulheres, 61% sofrem violência pelas mãos de um parceiro íntimo – outra estatística com que a Celeste pôde identificar-se.

Ainda durante a formação, as participantes foram incentivadas a partilhar as suas experiências, de forma confidencial. A Celeste sentiu-se segura e se abriu-se sobre a sua situação pela primeira vez.

“O que aprendi na formação motivou-me a procurar a libertação”, disse a Celeste.

De sobrevivente a exemplo poderoso

Nessa altura, as coisas começaram a mudar. As activistas ASCHA reconheceram a extrema agonia em que a Celeste vivia. Falaram com ela, ofereceram-se para acompanhá-la nas ruas para sua protecção e, após algum tempo, convidaram-na para ser activista. 

A Celeste recebeu formação como activista e começou a participar em campanhas porta-a-porta para ensinar as comunidades a prevenir a violência baseada no género e uniões prematuras, no âmbito do “Consórcio Contra a Violência Sexual” – uma parceria entre sete organizações de mulheres que trabalham para prevenir a violência sexual e baseada no género sob a Iniciativa Spotlight.

“O que aprendi na formação motivou-me a procurar a libertação” - Celeste, sobrevivente de violência baseada no género

O seu ex-parceiro ameaçou-a mais algumas vezes. Mas as ameaças foram-se tornando mais raras, à medida que ele entendeu que a Celeste não tinha mais medo dele. Ele também entendeu que a Celeste estava empoderada com conhecimento e protegida por uma rede de organizações de mulheres que trabalham sob um programa liderado pelo governo e, gradualmente, deixou-a em paz.

“Hoje posso caminhar pela rua sozinha. Não tenho medo”, disse a Celeste.

No entanto, o seu agressor nunca enfrentou a justiça.

Trauma, medo, normalização da violência e barreiras no acesso aos serviços de apoio impedem muitas sobreviventes de denunciar.

O baixo número de denúncias continua a ser um grande problema em Moçambique, assim como em todo o mundo. Dados globais sugerem que apenas quatro em cada dez mulheres que sofrem violência procuram ajuda de qualquer tipo e, dessas, apenas uma em cada dez apela à polícia.

Com o apoio da Iniciativa Spotlight, o governo está a capacitar provedores de serviços e a fortalecer as instituições nacionais, para garantir que os casos de violência denunciados sejam devidamente acompanhados, as sobreviventes protegidas e os agressores responsabilizados.


Activistas disseminam mensagens sobre prevenção da violência baseada no género com megafones pelas ruas da cidade de Xai Xai, na província de Gaza. Foto: ASCHA

Em 2020, os currículos das escolas de polícia foram revistos para incluir a prevenção da violência baseada no género, HIV/SIDA e direitos humanos como parte da formação dos cadetes. Instituições-chave, como o Tribunal Supremo, a Procuradoria Geral da República e o Serviço Nacional de Investigação Criminal estabeleceram Unidades de Género específicas.

Mais de 1.000 funcionários do sector da justiça foram treinados para implementar um novo pacote de leis aprovado pela Assembleia da República, que protege as mulheres e as raparigas da violência. Isto garante uma melhor capacidade da justiça formal para responder a casos de violência e responsabilizar os agressores.

Entretanto, a Celeste continua a trabalhar como activista. Ela dinamiza o espaço de debate “Fala Minha Irmã”, realiza campanhas de conscientização e fala sobre empoderamento das mulheres em programas de rádio locais. As suas companheiras activistas a chamam-na “Poderosa”. Desde que ingressou na ASCHA em 2019, a Celeste já ajudou mais de 50 raparigas a superar situações vulneráveis ​​e inspirou muitas mais a reivindicar os seus direitos.

Ela é uma entre centenas de activistas que trabalham com mais de 20 organizações da sociedade civil sob a Iniciativa Spotlight em Moçambique. Juntos, estes activistas alcançaram mais de 600.000 pessoas nas comunidades com informações vitais sobre a prevenção da violência baseada no género e as uniões prematuras, nos últimos dois anos. Pouco a pouco, eles estão contribuindo para um Moçambique onde todas as mulheres e raparigas possam viver livres da violência.

*o nome foi alterado para proteger a privacidade da sobrevivente 

A Iniciativa Spotlight é uma parceria global entre a União Europeia (UE), as Nações Unidas (ONU) e governos anfitriões, para eliminar todas as formas de violência contra as mulheres e raparigas. Em Moçambique, a Iniciativa é liderada pelo Ministério do Género, Criança e Acção Social (MGCAS), e trabalha com organizações como a ASCHA para apoiar mulheres e raparigas marginalizadas e vulneráveis à violência. A Iniciativa é implementada durante um período de quatro anos (2019-2022) com um orçamento de 40 milhões de dólares, disponibilizado pela UE. A iniciativa foca-se nas áreas prioritárias de combate à violência sexual e baseada no género e às uniões prematuras, bem como na promoção dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e raparigas.

Por Leovigildo Nhampule e Leonor Costa Neves