“Diziam que eu não podia ser mecânica, mas eu posso ser o que quiser” – a desconstrução dos papéis de género em Moçambique

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Com o apoio da Iniciativa Spotlight, Dulce Santos desafiou os papéis profissionais atribuídos aos homens e mulheres e tirou o curso de mecânica. Hoje divide a sua oficina com mais cinco colegas, paga os seus estudos e apoia as finanças familiares. Foto: UNICEF Moçambique/Lara Longle
11 outubro 2022

ANGOCHE, Moçambique – Dulce Santos, 18 anos, é estudante e a primeira mulher mecânica de Angoche, no norte de Moçambique. Hoje, com os rendimentos do seu negócio, paga os seus estudos e ajuda a sua família. Mas até conseguir montar a sua oficina, Dulce teve de enfrentar muitas crenças limitadoras sobre os papéis de Género.

“Aqui dizem que há profissões de homens e outras de mulheres; e eu nunca quis nenhuma profissão que diziam ser as “adequadas” para as mulheres”, explica Dulce. “Sempre gostei de motas, e queria saber arranjá-las”.

"Queria provar a todos os homens, mas sobretudo a todas as mulheres, que podemos, sim, fazer o que gostamos." - Dulce Santos, a primeira mulher mecânica em Angoche

Em Moçambique, o sector da agricultura ocupa mais de 90 por cento das mulheres e raparigas moçambicanas em idade activa (Fórum Mulher, 2019). Desde muito cedo, as meninas são envolvidas nas lides domésticas e no trabalho nas hortas familiares. Com o apoio da Livaningo, uma das Organizações da Sociedade Civil parceiras da Iniciativa Spotlight a actuar através de intervenções de capacitação económica, com foco no aumento da literacia económica e no fornecimento de kits de arranque para a criação de empresas, Dulce teve acesso a formação em mecânica e ao material que precisava para iniciar o seu ofício.

“Senti-me forte. Finalmente, eu podia escolher e ter a formação e os materiais necessários para ser mecânica. Queria provar a todos os homens, mas sobretudo a todas as mulheres, que podemos, sim, fazer o que gostamos. Todos diziam que eu não podia ser mecânica, mas eu posso ser o que quiser”, conta Dulce, orgulhosa.

Só em 2021, a Iniciativa Spotlight, em parceria com mais de 20 Organizações da Sociedade Civil, realizaram actividades de empoderamento económico que atingiram mais de 9.000 raparigas  e mulheres, durante as quais estas aprenderam novos ofícios e a gerir negócios.


No inicio, Dulce não tinha muitos clientes. Mas com o passar do tempo, e o apoio dos seus colegas da oficina, o seu trabalho foi reconhecido. Foto: UNICEF Moçambique/Lara Longle

Dulce trabalha durante a manhã numa oficina que divide com mais cinco colegas e estuda à tarde. Por ser mulher, foi inicialmente descriminada na sua profissão, e só com o passar do tempo e o apoio dos seus colegas é que conseguiu estabelecer o seu negócio.

“No início não tinha quase clientes nenhuns. Diziam que não queriam uma mulher a arranjar as suas motas, que não ia ficar bom. Eu decidi ter paciência. Com o tempo, e com a ajuda dos meus colegas,  foram chegando clientes, e hoje já não faz diferença para eles eu ser uma rapariga. Viram o meu trabalho, e viram  que somos iguais aos homens: sabemos arranjar motas”, conta.


No seu dia-a-dia, os dois serviços mais requisitados na oficinas são o arranjo de pneus e a troca de velas das motas. Com os lucros do seu trabalho, Dulce quer continuar a estudar e ser policia. Foto: UNICEF Moçambique/Lara Longle

O risco de violência e a desigualdade de género estão muitas vezes associados à vulnerabilidade económica. Ao aceder a oportunidades formativas e económicas, as jovens mulheres e mulheres encontram meios de subsistência que lhes permite estudar e ultrapassar a dependência financeira que, muitas vezes, têm dos seus companheiros. Durante o ano passado, as sessões de sensibilização sobre Violência Baseada no Género, Direitos Sexuais e Reprodutivos e Masculinidades Positivas, levadas a cabo pelos parceiros da Iniciativa Spotlight, alcançaram mais de 400.000 raparigas e rapazes de Manica, Gaza e Nampula, províncias onde a Iniciativa Spotlight é implementada.

“Por causa do meu negócio, consigo fazer muitas coisas. Em casa somos só mulheres, três irmãs e a minha mãe. Não temos pai a ajudar. Com os rendimentos do meu trabalho, consigo comprar o meu material para a escola e ajudar a minha mãe com comida para casa. A nossa vida melhorou muito”, conta Dulce.

Depois de terminar os estudos, Dulce tem outro sonho por realizar: ser agenda da polícia.

“O meu trabalho dá-me condições de continuar a estudar para ser polícia.  Já há algumas mulheres nessa profissão, mas são poucas. Eu quero ser uma mulher polícia. E se alguém me disser que não, vou contar-lhes o que aconteceu quando a Iniciativa Spotlight chegou aqui e me mostrou que podia ser mecânica”, diz Dulce, entre risos.

A Iniciativa Spotlight é uma iniciativa global das Nações Unidas que tem recebido o apoio generoso da União Europeia. O seu objectivo é o de eliminar todas as formas de violência contra as mulheres e raparigas. Em Moçambique, a Iniciativa Spotlight é liderada pelo Ministério do Género, Criança e Acção Social (MGCAS) em parceria com as Nações Unidas e organizações da sociedade civil (OSC).

Por Lara Longle